Num tempo em que se discute, com pressa e algum ruído — como tudo agora na vanguarda desta geração do estímulo —, a revisão da Constituição da República, é bom lembrar que, apesar de tardia, ela faz sentido. Não apenas no preâmbulo, mas em vários dos seus artigos. Ainda assim, há uma verdade anterior e essencial: antes de reescrevermos a Constituição, talvez devêssemos começar por cumpri-la.

Durante décadas, o discurso reformista foi empurrado para o banco dos réus e as políticas avulsas tomadas de assalto. Falar de reformas passou a ser sinónimo de cortes ou de tecnocracia. Assim, mudanças em áreas como a justiça, saúde, educação, mobilidade ou ordenamento do território foram sendo adiadas, mesmo quando, pasme-se, estavam previstas na própria Lei Fundamental. Talvez esteja finalmente na hora. Ou melhor: tem mesmo de ser a hora.

Nenhuma reforma será verdadeiramente legítima se não começar pela mais fundacional de todas: a forma como escolhemos quem decide. A reforma do sistema eleitoral não é apenas urgente. É, sim, o ponto basilar de todas as outras. Não se trata de uma questão técnica, mas de uma decisão profundamente política. É dela que depende a legitimidade do poder. É por ela que passa a qualidade e o futuro da nossa democracia.

Desde 1997, que a Constituição permite — no artigo 149.º — a criação de círculos uninominais, onde se elege uma pessoa concreta, e de um círculo nacional de compensação, que assegure a proporcionalidade. A isto chama-se sistema misto. Está lá. Não é preciso rever a Constituição. É preciso cumpri-la, mas é também preciso debater, com rigor e sem preconceitos, a melhor forma de o aplicar.

Porque não nos iludamos: não existe um modelo perfeito. E os círculos uninominais, por si sós, não garantem uma democracia mais participativa. São, em muitos casos, um reflexo de sistemas onde a cultura cívica, a transparência e a ética política foram sendo trabalhadas ao longo de décadas. Portugal precisa, sim, de reforçar a relação entre eleitos e eleitores, mas precisa de o fazer com equilíbrio e responsabilidade.

Estará na altura de ponderarmos uma nova via? Poderão os círculos uninominais ser parte de um caminho possível? Será um círculo de compensação nacional o instrumento certo para minimizar as gritantes discrepâncias eleitorais que hoje existem? Devemos também explorar outras dimensões: aumentar o número de deputados? Redesenhar círculos eleitorais para maior proximidade? Facilitar as candidaturas independentes e de movimentos de cidadãos? Adoptar formas de voto preferencial que fortaleçam a liberdade de escolha do eleitor?

Não faltam exemplos internacionais de sistemas eleitorais que procuram conciliar representatividade e proximidade. Nenhum é perfeito, mas todos partem de um princípio claro: cada voto deve contar, cada cidadão deve sentir-se representado.

Sabemos também que há propostas mais radicais em cima da mesa. Por exemplo, houve quem chegou a defender um sistema exclusivamente uninominal, com um círculo de compensação nacional. Será esse o caminho? Ou será preferível uma solução mais equilibrada e mais adaptada à realidade portuguesa?

O importante é que não fechemos o debate à partida. E que não deixemos que o medo do risco paralise a urgência da reforma. Os números falam por si.

Em 2022, cerca de 350 mil votos não elegeram ninguém. Em 2024, foram mais de 672 mil. Em 2025, mais de 1,1 milhões. Mais de 2 milhões de votos válidos, em apenas três eleições legislativas, ficaram sem expressão. Votos entregues… que não levaram a lado nenhum.

Desde 1975, mais de 9 milhões de votos foram desperdiçados. O equivalente a apagar quase um país inteiro de representatividade. Só em 2024, 12% dos votos não elegeram qualquer deputado. Em Portalegre, esse número chegou a 40%. Em Bragança, Beja e no círculo da Emigração, ultrapassou os 25%. Isto não pode ser descritivo de uma democracia plena. É uma democracia amputada.

E quem não percebe isto arrisca-se a não interpretar os sinais das últimas eleições. Onde sim, a AD venceu. E venceu bem. Mas os portugueses disseram mais do que isso: disseram que o modelo político dos últimos 50 anos se esgotou. Que querem mais representação, mais proximidade, mais justiça no valor de cada voto. A erosão do bipartidarismo não pode ser vista como uma casualidade: foi uma correcção histórica e o que está a nascer não é um novo regime, é uma nova exigência democrática. E o sistema actual já não a acompanha.

É aqui que entra a responsabilidade política.

O CDS-PP tem de ser o partido que pega nesta batuta e assume a liderança deste debate. Com respeito pelo PSD, sim. Mas com a audácia de quem está na AD para somar e não para se sentar. Para propor e não para se calar.

Afinal de contas, não nos basta o consenso do conforto. Não o consenso por inércia. Não o conforto do sofá político só porque todos estamos à mesa. O que queremos é um consenso com rumo, com propósito — que permita actividade, valentia e visão — e que nos leve a construir os próximos 50 anos de uma democracia mais próxima e mais viva.

Sim, esta reforma pode até custar mandatos. Pode até traduzir-se, num primeiro momento, em perda de votos para quem hoje lidera. Mas o que é que isso vale quando está em causa algo maior? Quando o que está em jogo é o futuro da democracia portuguesa? Quando a escolha é entre manter um sistema que exclui ou abrir caminho a uma representação mais justa, mais autêntica, mais digna?

Não podemos propor esta reforma para nos beneficiar. Temos de a propor porque beneficia a democracia.

Até porque, como se tem visto, as novas gerações não se afastam da política por indiferença. Afastam-se porque sentem que o seu voto não vale o mesmo em todo o lado ou não vale nada. Porque percebem que o sistema os ignora antes mesmo de começarem. Reformar o sistema eleitoral é, por isso, também uma questão de renovação democrática. De reconquista da confiança.

Ao fim de 50 anos de democracia, não basta assinalar datas. É preciso reformar estruturas. Se quisermos preparar os próximos 50 anos com instituições fortes, participação activa e cidadãos confiantes, temos de começar por aqui. Com mais justiça no voto, mais proximidade na representação e mais qualidade na democracia.

Não se trata apenas de mudar regras. Trata-se de refazer o pacto entre eleitores e eleitos. De elevar a política ao nível da exigência dos tempos. De voltar a dar dignidade ao voto.

Que tenhamos coragem para enfrentar o sistema. Que tenhamos coragem para contrariar o medo. Que tenhamos coragem para reformar com futuro.

Não basta votar. É tempo de contar. E alguém tem de ter a ousadia de dar o primeiro passo. Que seja agora. Que sejamos nós.