
No coração do Baixo Alentejo, onde a paisagem ondula entre sobreiros centenários, pastagens e culturas de sequeiro, um território moldado pela resiliência humana acaba de ser inscrito no mapa mundial dos sistemas agrícolas de exceção. O Sistema Agrosilvopastoril do Montado da Serra de Serpa foi oficialmente reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) como Sistema Importante do Património Agrícola Mundial (SIPAM).
Este reconhecimento internacional, alcançado após um processo de candidatura de seis anos e meio promovido pela associação Rota do Guadiana, em parceria com a Câmara Municipal de Serpa e o INIAV, IP, destaca a importância de um sistema vivo, multifuncional e sustentável, que combina produção agrícola, silvícola e pastoril com um património cultural e natural de elevado valor.
«Este sistema acontece porque, desde há várias gerações, existem pessoas, mulheres e homens, que estão a trabalhar em condições climáticas adversas, fazendo agricultura numa relação de subsistência com a natureza, preservando-a e valorizando-a», afirma David Machado, presidente da Rota do Guadiana.
Com uma área de 621,5 quilómetros quadrados e uma população residente de cerca de 7 300 habitantes, o território do Montado da Serra de Serpa representa um exemplo da agricultura tradicional mediterrânica de sequeiro. A prática agrícola neste espaço tem sido marcada pela diversidade de atividades, entre as quais se destacam o pastoreio extensivo, o olival tradicional, os pomares de sequeiro e as hortas familiares.
A especificidade deste sistema reside na sua complexidade e na profunda ligação entre homem e território. «O Montado é um sistema único, praticamente reduzido à Península Ibérica. É icónico porque sintetiza todos os elementos: a cortiça, o porco alentejano montanheiro, as raças autóctones, o mel, a caça e ainda uma paisagem humanizada rica em biodiversidade», descreve o investigador Inocêncio Seita Coelho, autor de vasta obra sobre economia do montado.
Este especialista sublinha ainda o modo de vida das populações locais, que permanecem ligadas ao território através de um modelo de habitat disperso: «As pessoas vivem no meio, nos montes dispersos. Vivem ali, têm ali a sua vida, estão agarradas ao território».
O reconhecimento da FAO baseia-se em cinco critérios fundamentais: a produção de alimentos de qualidade, a biodiversidade agrícola, o conhecimento local e tradicional, a organização sociocultural e a criação de uma paisagem agrícola distintiva.
David Machado destaca que «o sistema possui agrobiodiversidade» e refere a importância de raças como a ovelha campaniça, a cabra serpentina, a vaca molenga e o porco alentejano. Acrescenta que o território está associado à dieta mediterrânica e ao cante alentejano, ambos reconhecidos como património imaterial da humanidade.
No plano material, o montado da Serra de Serpa revela-se ainda em construções tradicionais de taipa, infraestruturas de captação de água adaptadas à aridez do território e uma rede de produção artesanal que transforma os recursos locais no próprio território. «Ali, a transformação dos produtos é feita mesmo no território. É muito difícil encontrar isto noutro lado», frisa Seita Coelho.
O reconhecimento da FAO não implica apoio financeiro direto, mas confere visibilidade internacional e impulsiona medidas de valorização no âmbito da política agrícola comum. Para David Machado, o objetivo é garantir a continuidade deste modelo: «Estamos preocupados em que essa actividade turística também seja sustentável. O sistema tem resistido às alterações climáticas e continua a valorizar a biodiversidade. É essa sustentabilidade que queremos preservar».
O plano de ação que acompanha a candidatura prevê intervenções nas áreas da investigação científica, diversificação económica, apoio aos agricultores e promoção do território. A inclusão de medidas de discriminação positiva no novo quadro da PAC é uma ambição partilhada.
O percurso até este reconhecimento internacional foi longo. Já antes havia sido feita uma tentativa de candidatura à UNESCO, sem sucesso. Agora, com o selo da FAO, o montado da Serra de Serpa passa a integrar a lista dos cerca de 100 SIPAM existentes no mundo.
«Foi um momento de grande entusiasmo para o comité científico da FAO. Quando viram a candidatura, disseram: finalmente o montado!», recorda Inocêncio Seita Coelho.
Este reconhecimento é, em última instância, um tributo às comunidades que ali vivem e cuidam do território. «Esta é uma das provas de que os agricultores são os melhores amigos da natureza. A sua atividade de subsistência resultou num sistema válido, frutuoso e resiliente», sublinha David Machado.