
Sob o pretexto da Inteligência Artificial (IA), o candidato presidencial ofereceu uma leitura épica da trajetória humana, apontando para um futuro onde viveremos “num mundo simbiótico entre dois tipos de inteligência” — a natural e a artificial. A narrativa, embora sedutora, deixou por explorar muitas das tensões e contradições inerentes a essa promessa.
A imagem da simbiose é, por natureza, reconfortante. Implica colaboração, complementaridade, benefício mútuo. Mas será esse o cenário realista num mundo em que os sistemas de IA são propriedade de um punhado de gigantes tecnológicos globais? Gouveia e Melo evocou o R2-D2 de Star Wars como metáfora do assistente ideal, mas ignorou as assimetrias de poder que se estão a acentuar entre quem detém a infraestrutura e quem a utiliza.
A ideia de que “já vivemos numa simbiose” porque os jovens usam o ChatGPT nas suas pesquisas é reveladora de uma visão demasiado otimista — ou ingénua — sobre os termos dessa relação. A IA não é apenas uma ferramenta; é também uma estrutura de poder. E Portugal, como muitos países, entra nessa dinâmica sem soberania tecnológica, sem autonomia em dados, e com uma capacidade limitada de regular as plataformas que moldam o quotidiano.
Gouveia e Melo contrapôs o cérebro humano — eficiente, criativo, espiritualmente dotado — à IA, dependente de energia massiva e incapaz de abstração profunda. É um ponto válido, até poético, mas que pouco contribui para a discussão urgente: como se reorganiza uma sociedade cujo mercado de trabalho, educação e sistemas de decisão estão a ser transformados por algoritmos que evoluem a uma velocidade desumana?
Ao elogiar as qualidades cognitivas do cérebro humano, o candidato presidencial tocou o nervo da resistência humanista. Mas não apresentou soluções práticas para o desequilíbrio crescente entre uma força de trabalho cada vez mais pressionada por automatismos e um sistema educativo obsoleto. Sim, “aprendemos devagar”, como disse, mas onde está a visão que deve acompanhar uma reforma deste sistema com a urgência necessária?
A promessa da investigação vertical
Num raro momento de pragmatismo, Gouveia e Melo apontou a investigação como saída para a irrelevância tecnológica de países como Portugal. Sugeriu uma aposta vertical, em nichos onde possamos ser competitivos, ao invés de tentar fazer tudo. É, talvez, a proposta mais concreta do discurso — e a mais pertinente.
Contudo, não avançou com áreas estratégicas, nem com uma visão estruturada de como essa “aposta vertical” se articula com políticas públicas, financiamento, parcerias internacionais ou formação. E sobretudo, não abordou a questão essencial: quem lidera essa estratégia? O Estado? O setor privado? As universidades?
Outra nota crítica: a visão de Gouveia e Melo sobre regulação. “Tudo o que regulamos significa cercear a inovação”, afirmou, sugerindo que o impulso criativo pode ser travado por um excesso de escrutínio ético. É uma visão clássica do discurso tecnoliberal, mas que não se coaduna com a complexidade atual.
A regulação não é um travão, é um balizador. Sem regras claras, não há confiança social nas tecnologias, nem legitimidade pública para a sua adoção. E sem confiança, a inovação converte-se em rutura, não em progresso. O discurso passou ao lado dessa nuance.
A abstração final e o vazio estratégico
Ao terminar com a metáfora bíblica de Adão e Eva, Gouveia e Melo fez um gesto retórico potente: a tecnologia como nova maçã do conhecimento, desejada, proibida, inevitável. Mas o paralelismo, embora elegante, escapa à exigência do momento. A questão não é se devemos morder a maçã — já a mordemos. A questão é como lidar com o que vem depois.
Num evento promovido por uma das maiores potências tecnológicas globais, esperava-se talvez uma maior confrontação com os desafios reais: soberania digital, dependência tecnológica, governança algorítmica, desigualdades no acesso à IA, erosão do trabalho qualificado. Em vez disso, tivemos um manifesto filosófico, instigante, mas em grande parte desligado da operacionalidade política.
Há, sem dúvida, mérito no esforço de Gouveia e Melo em trazer complexidade à campanha presidencial. O seu discurso foi intelectualmente mais denso do que o habitual. Mas peca por falta de enraizamento prático. A tecnologia precisa de uma visão ética e estratégica. Não basta exaltar a capacidade do cérebro humano ou evocar um futuro em simbiose com as máquinas.
Portugal precisa de planos, não apenas parábolas.
E Gouveia e Melo, se quiser liderar num tempo de transição profunda, terá de descer da abstração para o terreno — onde os dados são soberanos, mas o futuro continua a exigir escolhas humanas.