Já se falou muito no orçamento, mas muito pouco ou nada dos grandes desafios estratégicos de Portugal a médio-longo prazo – em particular, dois...
A discussão do Orçamento 2025 tem merecido, como sempre acontece, centenas de horas na comunicação social, sempre demasiado dedicada à espuma dos dias, esquecendo os assuntos realmente importantes nos quais podia fazer maior diferença. Se fizermos um exame de consciência, muitos de nós, como eu, consideram que Portugal tem problemas estruturais sérios que vão afetar o futuro do país a médio-longo prazo e que têm de ser tratados em conformidade por todos os meios possíveis – pelo orçamento, pelo governo e pela sociedade como um todo. A matriz energética, a gestão do turismo, a gestão da água, a ocupação dos solos, a carga fiscal, a burocracia... claro que têm uma importância estratégica no futuro de Portugal, mas na minha opinião há dois desafios num patamar à parte: a pobreza e a natalidade.
A pobreza e a natalidade são talvez os maiores cancros sociais de Portugal. Se estamos a recuperar as finanças do Estado e a fazer crescer a economia acima da média europeia, se somos um país onde é tão agradável viver pelo clima, pela tolerância social ou pela segurança, não é admissível continuarmos na cauda da União Europeia em taxa de natalidade e com a população abaixo do limiar de pobreza.
No combate à pobreza, bons resultados para estimular ainda mais esforço
Em 2022, Portugal tinha 20,1% da população em risco de pobreza ou exclusão social vs. 26,1% na UE como um todo. Um em cada cinco portugueses são tecnicamente pobres, é muito. Muito tem sido feito pela pobreza através de subsídios, habitação para os sem-abrigo (paradigmático o caso de Lisboa) e as ações sociais do Banco Alimentar contra a Fome, da Caritas, da Cruz Vermelha ou das muitas redes de distribuição de refeições. Sim, são migalhas, não chegam, mas sente-se que há mais esforço e mais resultados. Estamos ainda longe mas tanto quanto é possível no caminho certo.
A natalidade continua a ser um dos maiores desafios de Portugal e o seu aumento visível tem de ultrapassar profundos obstáculos a vários níveis
No tocante à natalidade, o panorama é infelizmente pior e por isso decidi sair das minhas normas editoriais e fazer deste tema o foco da coluna de hoje. Temos em Portugal taxas de natalidade insuficientes, inferiores à média da UE (1,43 vs. 1,46) e cada vez mais dependentes de mães estrangeiras (tal como a França, que tem a mais alta taxa de natalidade da Europa devido às mães estrangeiras). Além disso, o que é mais chocante, Portugal é o país da UE com menor número de filhos por casal e só 6% das famílias têm três ou mais filhos (definição de famílias numerosas) contra 13% em média na UE.
Esta situação está obviamente ligada à adoção de estilos de vida tipicamente urbanos com profissões que consomem muito tempo e aspirações materiais de qualidade de vida (a casa, os carros, a roupa, as viagens, os colégios de marca...) que tornam tantos jovens casais escravos da corrida ao rendimento. Queixam-se da falta de tempo e de dinheiro para ter filhos e não os têm ou têm um ou dois.
Esta tendência de trade-off não vem por acaso. É um comportamento social que esteve, e ainda está, verdadeiramente na moda. Desde há uns anos, muitas executivas célebres defendiam, e defendem, que a mulher tem de lutar por uma carreira sem distinção do companheiro. Sheryl Sandberg, CEO da Facebook, foi um dos navios almirante desta frota. É um dos pilares do “movimento feminista”, que estimula intensamente trocar tempo para ter e cuidar dos filhos por uma vida de luta na permanente escalada em direção a certas aspirações profissionais e sociais para ter a mulher pelo menos ao nível do homem. O reforço do feminismo dá origem aos movimentos para a Igualdade de Género que têm atravessado a sociedade de uma forma avassaladora, ao ponto de afetar muitas vezes a igualdade pretendida colocando-a no sentido inverso. De facto, a pressão para contratar mulheres tem levado cada vez mais à contratação de mulheres menos preparadas do que candidatos masculinos, violando princípios básicos de meritocracia e afetando a qualidade de desempenho oferecido a quem recruta. Ou seja , o homem é preterido pela mulher apenas porque a igualdade de género, deturpada para um “equilíbrio de género”, recomenda que seja contratada a mulher. E em certos casos, mesmo que o homem fosse a melhor escolha.
Veja-se o caso do IPCG : o Código de Governo das Sociedades recomenda o “equilíbrio de género” na composição dos Conselhos de Administração . Em 2020, apenas duas empresas do PSI 20 respeitavam este critério mas em processos de seleção de novos membros não executivos nas restantes há claramente uma tendência de selecionar uma mulher, mesmo que haja homens com competências superiores, só para ter a empresa mais alinhada com o tal “equilíbrio”. Quer isto dizer que, ao tentar promover uma medida que pretende ser louvável, o código do IPCG acaba por se transformar num instrumento de discriminação de géneros – e da nossa experiência conhecemos vários casos que o provam.
O que diz o IPCG no seu ponto 1.2.1 ? “Para além de atributos como competência, independência, integridade, disponibilidade e experiência, estes perfis devem ter em conta os requisitos gerais em matéria de diversidade, com especial atenção para a diversidade de género, que pode contribuir para um melhor desempenho do órgão de gestão e para o equilíbrio da sua composição.” De facto, é um principio infeliz: não obstante colocar a competência à cabeça, dá à diversidade uma qualificação desprovida de quaisquer justificações ou métricas objetivas e conduz à referida discriminação de géneros “invertida”.
A solução passa por conjugar uma nova mentalidade do casal que liberte tempo para mais filhos, maiores estímulos financeiros e mais prestígio das famílias numerosas na sociedade
Mas poderá esta tendência estar a inverter-se? Em Portugal, como no resto da Europa, não só se começam a louvar as famílias numerosas mas a admirar o seu desprendimento da sofreguidão de ascensão social. Ainda de forma marginal, mas com cada vez maior frequência, vão aparecendo reportagens e artigos que projetam estas famílias como exemplos. A série da RTP1 Famílias Numerosas – a Vida em XXL que está agora a ser exibida retrata seis famílias numerosas, transmitindo a ideia de que o forte calor humano se sobrepõe aos desafios que uma família numerosa sempre tem.
Antes desta série e ao longo de alguns anos, um semanário português fazia uma reportagem semanal sobre uma família numerosa. Para além de ser estimulante perceber a felicidade de ter muitos filhos e como cada um geria os desafios do dia-a-dia, era possível ver que os pais tomaram claramente a sua opção de vida: escolher ter mais filhos obrigou a adotar um nível de vida diferente do que atingiriam com menos do que três. Essa era uma questão recorrente e em cada entrevista a opinião de todos era unânime: ganhámos mais com a família do que com um estilo de vida melhor a dois ou a três. Mas note-se algo importante – este trade off vai-se esbatendo com a idade e o rendimento crescente proporcionado pelas boas carreiras dos pais. É frequente ver pais em altos cargos e uma vida exigente com famílias numerosas – e a aumentá-las à medida que a sua carreira se fortalece.
Mudar mentalidades demora tempo mas pode ser sempre mais rápido se houver uma conjunção concertada de esforços do governo, das empresas e da sociedade em geral em torno de um veículo sério e com provas dadas
É estimulante ver como o governo responde às preocupações partilhadas neste artigo. Coloca o aumento de natalidade enquadrado no desafio demográfico de âmbito mais amplo como o primeiro ponto do seu Programa e transmite de forma assertiva o seu empenho no desafio demográfico em geral e na natalidade em particular. Admite que “Portugal enfrenta um enorme desafio demográfico, com previsões de declínio populacional para as próximas décadas. Tem sido notória a ausência de visão política que fomente a natalidade (...)” e compromete-se a alterar a situação através de um vasto conjunto de medidas destinadas a levar o país como um todo “(...) a promover a cooperação e uma abordagem multissetorial para cumprir o desígnio nacional de aumentar a natalidade, adaptar-se ao envelhecimento demográfico em marcha e preparar novas respostas, ao longo do ciclo de vida, que acompanhem o aumento da longevidade e a mudança de perfil das pessoas idosas no futuro”.
Este compromisso do Programa do Governo responde a várias contestações e reivindicações que a dinâmica Associação Portuguesa de Famílias Numerosas tem vindo a fazer ao longo dos últimos anos. A Associação tem por missão “Representar e defender os interesses das famílias com três ou mais filhos e promover o seu apoio mútuo” e assume como valores uma única frase que tão esquecida está nas sociedades ocidentais: “A Família é a comunidade de amor onde se funda a sociedade, anterior ao Estado e que este deve servir.” Ou seja, assume frontalmente o papel e a responsabilidade dos pais na educação dos filhos antes da responsabilidade da escola – algo tão importante mas tão raro de ouvir.
A Associação promove os programas Familiarmente Responsável, aplicados a diferentes setores, como empresas ou autarquias, e tem conseguido obter vários benefícios para as famílias com três ou mais filhos, mas o efeito líquido está ainda muito abaixo do potencial que agora se abre com o compromisso assumido pelo governo.
Dar exposição a líderes de opinião com famílias numerosas: a arma que está a provocar uma revolução social nos Estados Unidos
Há um elemento que não aparece explícito no Programa do Governo nem nas atividades da Associação, mas que pode, nos dias de hoje, revelar-se determinante na mudança de atitude da maioria dos jovens casais em relação a ter três ou mais filhos: o prestígio social transmitido através do exemplo de líderes de opinião destacados.
Nos Estados Unidos esta tendência está a ganhar muita força com a sublevação das chamadas Trad Wives ou esposas tradicionais, que mudam a sua vida para se dedicarem à casa e aos filhos – a cada vez mais filhos. O Sunday Times desta semana dedicou um longo artigo ao tema com exemplos que, apesar das suas particularidades, são altamente inspiradores, e será uma questão de tempo até que o feminismo frenético e a obsessão de escalada social acabem por dar lugar ao desejo de ter uma família maior e de deixar no fim da vida um legado muito mais valioso do que um testamento de bens materiais.
A protagonista é Hannah Neeleman. Mormon de 34 anos, nora do nosso conhecido David Neeleman, ficou famosa com o cognome Ballerina Farm por nove milhões de seguidores quando abandonou uma carreira auspiciosa de dança clássica em Nova Iorque para casar, dar à luz e criar oito filhos e ordenhar as dezenas de vacas da herdade onde a família vive. O apogeu da sua notoriedade surge quando vence o concurso de Mrs. America dois dias depois do nascimento da sua filha mais nova, Flora (o mais velho tem 12) e as redes sociais aclamaram-na The Queen of Trad Wives.
Quando lhe perguntam como mantém uma vida simples de mãe e rancheira, apesar da gigantesca exposição nos media e nas redes sociais, cita o marido: "Ele diz que nós não nos podemos apoiar no que as pessoas dizem ou nos títulos que as pessoas nos põem. Só temos de viver nossa vida, senão vamos ser esmagados.” Ela faz por desligar, o marido desliga mesmo.
Será este o advento dum novo modelo de feminilidade empoderador e um forte murro no estômago do feminismo prevalecente das ultimas décadas? Totalmente opostas às Boss Girls carreiristas como Sheryl Sandberg, as Trad Wives são mulheres que rejeitaram os modelos de “mulher moderna” para adotar a existência mais tradicional de esposa, mãe e dona de casa. Muitas promovem a sua vida online, algumas para milhões de seguidores, o que tornou o movimento explosivo. É importante realçar que, como seria de esperar, o cristianismo e a fé estão no centro dos padrões e valores destas mulheres, o que ajuda a compreender a determinação e energia com que abraçam este novo estilo de vida.
Mas há claramente receios com este movimento – e porventura justificados. Leslie Root, cientista comportamental da Universidade do Colorado, refere que “as Trad Wives são vistas como uma resposta para um ataque cabal e agressivo às baixas taxas de natalidade. Isso não é isolado, faz parte de uma ansiedade política mais ampla que ganhe uma força social expressiva e que possa acabar em tentativas de circunscrever a vida das mulheres."
Poderá a onda americana das Trad Wives chegar à Europa e ser gerida pelos seus benefícios, conseguindo evitar os riscos?
O caso das Trad Wives tem laivos muito próprios da cultura norte americana porquanto mulheres que são perfeitas role models com maridos e filhos adoráveis são um néctar para alimentar uma sociedade volátil e vulnerável, habituada a ir atrás do glamour fácil esperando algum contágio mágico sobre si próprias. Mas, como tantas modas antes, a onda pode chegar à Europa e, havendo o bom senso e o cuidado de amigos e familiares para que não se caia no exagero, não há dúvida que pode ser uma arma de imenso valor no aumento da taxa de natalidade.
Comentário final
A par da eliminação da pobreza, o aumento da taxa de natalidade tem inevitavelmente de ser, de longe, a principal prioridade do país a longo prazo e é reconfortante ver que o Programa do Governo reflete exatamente isso e enumera um vasto conjunto de incentivos para o efeito.
Há no entanto um trabalho profundo de mentalização dos jovens para verem a construção da família como algo mais importante do que a carreira. Se dúvidas e receios subsistirem, porque não fazer o que defendo há anos que é saírem de Portugal e voltar depois de cinco anos de fast track well paid career e poupanças, estarão com 27 ou 28 anos, bem a tempo de ter muitos bebés e ter uma vida muito mais preenchida e feliz. Não resisto a confessar que, modéstia à parte, foi a minha opinião num artigo que levou a Business Roudtable Portugal a alterar a sua posição na matéria – quando no início bradavam por não deixar sair os jovens.
Numa palavra, que se tome o exemplo dos EUA adaptado ao caso nacional, se alavanque nas iniciativas dos media sobre famílias numerosas e se complemente as medidas do governo com a forte campanha nacional que se impõe para sensibilizar os jovens casais a dar prioridade à construção da sua família em detrimento da corrida social a bens materiais.
Empresário, Gestor e Consultor