Com a dissolução da Assembleia da República, mergulhamos de novo num buraco negro, ao qual, infelizmente, já estamos acostumados, onde se vive sob um poder executivo manietado e um poder legislativo bloqueado. A partir desta quarta-feira, Portugal entra oficiosamente em campanha eleitoral. Como se um cidadão de inteligência média não conseguisse reconhecer que esse é o estado natural desta baiuca desde outubro de 2019, quando expirou a validade dos papelinhos que o mefistofélico Cavaco Silva exigiu para que as esquerdas se unissem para nos pastorear.
Desde então, convém recordar, mais nenhum governo, apoiado ou não por uma maioria absoluta no Parlamento, completou uma legislatura. Ora porque não lhes foi possível aprovar o Orçamento do Estado ora porque os primeiros-ministros, enredados em situações nebulosas, saíram ou pediram a terceiros que lhes fizessem o favor de abrir a porta.
Nos próximos 60 dias, vamos ouvir intermináveis elaborações sobre a ética no exercício de cargos públicos, convertendo o sufrágio num plebiscito ao primeiro-ministro e à sua honorabilidade. O que, em abono da verdade, poupa o próprio e os demais líderes partidários (especialmente os dos dois maiores partidos da oposição) a discussões mais supérfluas como a visão que têm para o país ou como querem que Portugal se comporte no quadro internacional.
Em 2025, nem perante aquela espécie de salvo-conduto até Kiev que Trump concedeu a Putin, deixamos de ouvir as maçadoras pombas da paz arrulhar que a Europa e, por maioria de razão, Portugal não podem desperdiçar mais um único cêntimo em Defesa, porque o "belicismo" e a "corrida ao armamento" só serviriam para "alimentar a indústria da guerra" e significariam o desvio de verbas da educação, da saúde, da habitação, dos transportes e de outras políticas de cariz social.
É esta a armadilha argumentativa dos putinistas convictos, dos trumpistas incorrigíveis e, pior ainda, dos que, não sendo uma nem outra coisa, se resignam à política de tíbios para tolos. Aquela em que se aceita o fingimento de que governar não pressupõe escolhas. Aquela em que esse fingimento costuma ser merecedor de recompensa eleitoral.
Por mais importantes para o presente e estruturantes para o futuro que sejam os chamados gastos com o Estado Social, de nada servirão a uma pátria prostrada pela dependência face a terceiros ou vergada pela força de quem só concebe uma Europa onde se fale russo dos Urais ao Cabo da Roca.
Portanto, já que pela imperiosa necessidade de reformar o país pouco se conseguiu nos últimos anos, que nestas eleições alguém seja capaz de assumir que talvez venha a ser necessário reajustar os orçamentos anuais da República, redimensionando o Estado e poupando os contribuintes às excentricidades de quem ainda não se deu conta de que governa, sobretudo, gente remediada.
Ainda assim, para lá dos cortes indolores – como a racionalização do ciclópico setor empresarial do Estado –, os esforços de dissuasão de uma guerra com início a Leste, sem ser pelo recurso a mais dívida, são incompatíveis com a canalização de 16,8 mil milhões de euros para a Saúde ou 7,5 mil milhões para a Educação. Isto enquanto na Defesa não se ultrapassam os três mil milhões, bastante aquém das exigências da NATO (que tem aceitado com bonomia as discrepâncias entre os montantes que efetivamente gastamos e aqueles que lhe reportamos).
Mais: um país capaz de enfrentar os desafios de uma nova ordem mundial – seja ela qual for – dificilmente poderá continuar a despender 10,9% do seu PIB em salários da Função Pública ou 18,1% em prestações sociais (a maior fatia com pensões), como projeta o governo. Muito menos poderá persistir neste caminho de crescimento anémico das últimas três décadas, por mais serpentinas e confetti que sejam lançados quando circunstanciais saltinhos decimais pareçam pulos de gigante ao lado dos nossos adormecidos congéneres.
Acabaram os tempos em que as reflexões sobre o Estado Social não venciam os dogmas e em que o debate sobre a sua sustentabilidade era questão de fé. Os líderes sensatos e moderados devem-nos esse compromisso com a verdade. Têm dois meses para demonstrar que, estando em causa o nosso futuro coletivo, não existem vacas sagradas.
Ex-jornalista e especialista em comunicação