Acredito piamente que a atual jovem geração se moldou com melhores padrões morais sobre a estética do que a nossa geração imediatamente anterior (geração Y- geração de noventa). Esses padrões são sobretudo pautados por valores mais corretos e menos discriminatórios quanto ao aspeto da forma corporal e quanto à autoperceção dela.
Isto revela-se de ciclópica importância no Outubro Rosa com a campanha de sensibilização focada no cancro da mama. E no autocuidado. Mas, o que é o autocuidado nesse contexto patológico ou de prevenção? Não é só sobre evitar a doença, mas também o respeito por quem dela padece, e por quem dela tem medo. Entre rastreio e o medo real, algo agoniza entre mulheres: o preconceito quanto ao corpo.
Felizmente, a partir do momento que se compreendeu que a perceção dos outros e a própria perceção do corpo são construtos distintos, o cenário tornou-se mais empático. Menos o é entre pessoas acima dos 40 anos que são menos educadas na avaliação que elaboram dos outros. Lá está a geração anterior. O sexo feminino é o mais afetado e muitos “corpos não aparecem” em público por causa do receio e até fobia do julgamento alheio. Há fé na geração Z (mais jovem, mas já adulta). E os seios que antes foram os “seios políticos” lutadores na marcha sufragista, do século anterior, agora são postos em causa até em praça pública.
A ideia da perfeição estampada nos outdoors não auxilia a emoção de mulheres que sofrem da mortificação do cancro da mama, nem as que aguardam por crescer com medo de o desenvolverem. E esse medo vem também do preconceito do corpo perfeito, da saúde perfeita. É muito feia a expressão que muito se ouve: “É só saúde”, quando passamos de corpo bem feito e roupas aladas. Um piropo que tem algo de discriminatório, se pensarmos no outubro rosa. A coisa perde logo a cor.
Neste mês lembramos também os maus auspícios: a doença tem aumentado drasticamente pela hereditariedade, mas também pela epigenética (somos aquilo que os pais ingeriram, em que se viciaram e em que ‘moraram’). Depois, aumentou exponencialmente também a ideia de corpo absolutamente bonito. Nada disto ajuda.
Algo pode estar a ser tábua de salvação: a pluralidade ou fluidez da identidade de género está a ‘apagar’ as formas corporais em prol das expressões corporais. As expressões – não as formas - corporais são comportamentos distintos do nosso corpo, que deixa de ser visto (ou devia deixar de ser visto) como uma forma individual, mas é antes uma forma relacionada com outras. Corpos entre si que constroem narrativas do que são, sem seguirem manias (no sentido da Psicologia e das perturbações associadas à imagem e ao neuroticismo). Manias essas relacionadas com a futilidade da forma física. Somos muito além do físico, somos uma história de relação corporal porque geramos intimidade e relações de comunicação entre humanos. Somos gente com males de saúde transculturais e com cicatrizes que, por si só, são narrativas da vida heroína. Não pedimos o direito ao voto, não queimamos os soutiens, mas queira-se incendiar preconceito.
Um corpo nunca será perfeito, mas as suas imperfeições idiossincráticas são o cerne do que é um corpo bonito. Enquanto não se amadurecer esta ideia, racismo e xenofobia serão exaltadas. E falta aqui um nome para quem parece ter fobia de corpos com doença ou com fealdade. Não seremos muito mais civilizados do que a geração rechonchuda renascentista em que os seios não eram armas políticas, mas escravos da beleza artística. Atualmente, a escravidão está no nosso corpo e pele e isso é sinal muito néscio das nações.
Gostava que pais e mães explicassem as vezes necessárias aos seus filhos que o corpo perfeito está desaparecido. Não é um cadáver, mas a ideia dele morreu. Se não morreu, que se morra de uma vez. Que não ressuscite, pois o corpo certo é o das relações psicológicas com outros corpos. E nessa relação está o carinho e compreensão por quem sofre de cancro da mama. Que lhe cicatriza o corpo.
Caso de crime de desaparecimento encerrado? Sim, espero. Não fosse eu a comentadora televisiva (como noticiaram “a menina do crime: sim, disse ela!”) do crime desde 2015. E feminista, sim, desde os 4 anos.
Professora universitária, investigadora científica e escritora