Quando a escritora N.K. Jemisin compôs a trilogia Terra Fraturada (entre 2015 e 2017), ganhando em três anos seguidos, num feito inédito, o importante Prémio Hugo de melhor livro de ficção científica ou fantasia, quis contar uma história sobre quem detém o poder, que tipo de poder pode ser esse e de que forma ele é usado, sem olhar a meios para atingir os fins. Tudo isto interligado com uma poderosa metáfora de como a sociedade usa as pessoas que marginaliza para fazer funcionar as engrenagens do poder. No último livro da saga (e pedimos desculpa por este breve spoiler), o leitor descobre, entre muito mais, que algures no passado – para nós será num futuro distante – a humanidade tenta extrair do núcleo da Terra uma forma de energia em estado bruto, uma força igualmente mágica, que lhe garantirá energia perpétua e abrirá portas para todo um novo paradigma civilizacional. Mas, no fim, tudo corre mal e a catástrofe abate-se sobre o nosso planeta.
Todavia, é com todo a cautela e muita ciência incorporada que a Islândia, uma ilha pejada de vulcões ativos e conhecida como a Terra de Fogo e Gelo, se está a preparar para fazer algo que, até algum tempo atrás, muitos considerariam impossível ou uma “coisa de loucos”. O plano, basicamente, passa por perfurar o solo até uma profundidade de dois quilómetros e chegar, em total segurança, até uma câmara de magma de um dos vulcões mais ativos do país, o Krafla – situado no nordeste do país –, para a estudar e, não menos importante, a partir dela produzir energia geotérmica em quantidades jamais obtidas
Usando palavras simples, os investigadores islandeses, de acordo com uma reportagem da New Scientist, já estão a preparar tudo para, em 2026, começar a cavar dois longos buracos que ligam a superfície a um reservatório de rocha líquida que foi detetado a essa profundidade em 2009, e cuja temperatura alcança, no mínimo, os 900 graus Celsius: além de estar submetida a uma pressão 500 vezes superior à que é sentida à face da Terra.
Estamos a falar do mesmo tipo de rocha líquida que sai dos vulcões e que, quando brota e flui pela superfície, ganha o tão famoso nome de “lava”. A mudança de nome deve-se à perda de gás e a alterações químicas que sucedem ao magma quando chega ao mundo cimeiro.
Aqui chegados, uma pergunta explode logo na nossa cabeça: mas não existe o perigo de isto despoletar uma erupção vulcânica com consequências destrutivas? Calma, já daremos resposta a essa dúvida. E sim, é verdade que um dos sistemas vulcânicos do sudoeste da Islândia, na península de Reykjanes, entrou recentemente em erupção e levou à evacuação da pequena cidade portuária, com quatro mil habitantes, de Grindavik. Só que esse é um dos problemas de se viver numa ilha que está mesmo no topo da dorsal Meso-Atlântica, num dos pontos da linha de divergência (separação) das placas tectónicas norte-americana e euro-asiática. Ou seja, estranho seria se durante muito tempo aí não ocorressem erupções de magma, de pequenas ou grandes dimensões.
Uma central geotérmica com acesso ao reservatório de magma do vulcão Krafla poderá produzir dez vezes mais energia do que uma central tradicional do mesmo género
A missão de perfurar a crosta até chegar ao magma será colocada em prática pelo projeto KMT (acrónimo do inglês Krafla Magma Testbed), contando com o forte apoio do Estado islandês. Entre as suas fileiras estarão, de acordo com o KMT, “uma coligação internacional dos melhores vulcanologistas, peritos geotermais e engenheiros de perfuração do mundo, com décadas de experiência a explorar e a perfurar, a grande profundidade, campos geotermais de elevada temperatura”.
O primeiro furo, que demorará dois meses até chegar ao reservatório de magma, tem um objetivo científico e destina-se a conhecer melhor esta rocha líquida e as condições em que se encontra debaixo do subsolo, pois estamos a falar da matéria que é a grande responsável por criar, e constantemente reconfigurar, todos os continentes, arquipélagos e ilhas que existem, existiram e existirão no planeta.
Analisar lava é bastante fácil nos dias de hoje, com as devidas precauções, pois todos os anos ocorrem entre 50 a 70 erupções vulcânicas, existindo 1500 vulcões ativos, indica o instituto científico British Geological Survey, sendo que 82 deles estão na Europa, com 32 deste grupo a estarem concentrados só na Islândia. Em sentido contrário existe o facto de que "não temos qualquer conhecimento direto do aspeto das câmaras de magma, o que é crucial para compreender os vulcões”, explica à New Scientist o italiano Paolo Papale, geocientista ligado ao KMT. "Ser capaz de entrar na crosta e recolher amostras de magma dar-nos-ia um enorme conhecimento", acrescenta o islandês Hjalti Ingólfsson, um dos mentores e líderes deste projeto.
Depois do furo inicial, será feito um segundo, desta vez para testar novos métodos e tecnologias de produção de energia elétrica geotérmica.
Um pouco por todo o mundo, em países com sistemas vulcânicos ativos, já se extrai energia geotérmica em larga escala desde a segunda metade do século XX, com destaque, atualmente, para os EUA, a Indonésia e as Filipinas. A Islândia, apesar de produzir em menor quantidade, consegue que ela seja responsável por 25% de toda a energia elétrica gerada neste país com pouco mais de 370 mil habitantes – o que torna o preço a pagar pela energia muito mais barata para os consumidores, em comparação com o que se gasta noutras nações dependentes de outras fontes, nomeadamente dos combustíveis fósseis.
Todavia, e aqui não há qualquer novidade, estamos a falar de furos com alguns quilómetros de profundidade, que aproveitam o facto de a temperatura aumentar quanto mais se escava na crosta terrestre, em direção ao centro do planeta. Noutros casos, perfura-se até zonas onde existem nascentes de água quente, podendo bastar, nestes casos, descer até algumas poucas centenas de metros. O método de produção consiste em usar o vapor que emana dos furos para fazer movimentar turbinas que depois geram eletricidade.
O caso é diferente quando se tenta, pela primeira vez, obter este tipo de energia junto a uma embocadura que dá acesso a uma câmara de magma em que o líquido rochoso tem uma temperatura, no mínimo, de 900 graus Celsius, e uma pressão atmosférica 500 vezes superior à que existe na superfície. De acordo com a New Scientist, estas condições únicas multiplicam por dez a quantidade de energia geotérmica gerada em comparação com um furo tradicional, pois este último só consegue alcançar temperaturas a rondar os 250 graus: por sua vez, uma central de produção de energia aquecida por combustíveis fósseis recorre, por norma, a um vapor de água com 450 graus.
Tudo começou quando se quis furar 4,5 quilómetros de subsolo mas a broca ficou parada a meio caminho, presa numa “cola” de rocha líquida que depois solidificou: tinham chegado a uma câmara de magma… e nenhuma erupção ocorreu
Existe, portanto, “um interesse em tentar desenvolver [energia] geotérmica superquente”, refere o geocientista John Eichelberger, da equipa KMT, até porque, para a obter, verificou-se que não é preciso penetrar tão fundo como antes se pensava, o que diminui imensamente os custos, além de que, e mais importante, é algo que se pode fazer de forma segura e sem consequências nefastas – como deflagrar uma erupção.
A descoberta de que não é preciso ir muito longe na crosta foi feita em 2009, quando uma outra equipa, recorrendo a tecnologia recente que permite detetar a localização de bolsas de magma, perfurou o mesmo local na expectativa de chegar a água quente que estimavam estar a 4,5 quilómetros de profundidade, muito acima do magma. Ou seja, não estava na cabeça de ninguém chegar à bolsa de rocha líquida do vulcão Krafla, até porque se desconheciam a consequências de o penetrar a partir da superfície.
Quis o destino que, aos dois mil quilómetros, a broca se comportasse de forma inesperada: “de repente mergulhou [no subsolo] como uma faca quente em manteiga, e depois, abruptamente, parou” de se mover, recorda o artigo da New Scientist. Verificou-se que a broca tinha ficado colada a um material feito de vidro vulcânico, extremamente duro: a obsidiana. A conclusão foi a de que tinha penetrado na câmara de magma, e a rocha derretida aí existente envolveu a broca, colou-se a ela e solidificou, tapando a abertura que tinha sido feita.
“Mais tarde, descobriu-se que encontros acidentais semelhantes já tinham ocorrido duas vezes, uma vez na caldeira vulcânica do Menengai, no Quénia, e também no Kilauea, no Havai. Isto era a prova de que era possível e seguro perfurar magma sem provocar uma erupção”, adianta a revista.
E foi assim que se abriu a porta, recorrendo a estas novas descobertas e à mais recente tecnologia de ponta, para o KMT e o governo islandês se embrenharem num projeto que pode levar a uma nova forma de obtenção de energia elétrica, proporcionada pelo magma existente nas entranhas da Terra: “poços são perfurados na zona frágil-dúctil [da câmara de magma] e exploram água extremamente quente e altamente pressurizada para acionar turbinas”. Assim dito, até parece simples, mas não é.
A expectativa, idílica, é que se obtenha uma forma de energia quase ilimitada, barata e limpa, mas isso terá de ser demonstrado na prática e ao longo dos próximos anos. Um exemplo, e que a reportagem da New Scientist não refere, é que o magma contém contem vários gases, principalmente dióxido de carbono, sulfeto de hidrogénio (um gás ácido formado por enxofre e hidrogénio), metano e amoníaco. Uma vez libertados para a atmosfera, estes gases poluentes contribuem para para o aquecimento global, além de estarem na origem de chuva ácida e causarem problemas respiratórios.
As atuais centrais geotérmicas estão equipadas com sistemas que controlam as emissões de gases poluentes, mas lidar com os gases do magma é todo um novo território a estudar, até porque, como se referiu logo de início, ainda há muito por compreender sobre este fluído e os reservatórios em que estão contidos.
Björn Þór Guðmundsson, outro dos nomes à frente do projeto, para descrever o entusiamo em torno do que se vai tentar fazer diz que esta “é a primeira jornada até ao centro da Terra”.
Pode parecer um lirismo, pois seria preciso furar à volta de 6300 quilómetros para realmente lá chegar, mas tendo em conta que até há pouco parecia tecnicamente impossível, e imprudente, escavar até à rocha líquida que circula debaixo dos nossos pés, percebe-se o natural otimismo em relação ao futuro. Contudo, e tal como avisa N.K. Jemisin na trilogia Terra Fraturada, essa é uma “viagem” em que se tem de evitar a arrogância e o excesso de confiança.