Fez no passado dia 22 de julho dez anos que Anders Breivik, um radical da extrema-direita, fez explodir uma bomba junto ao edifício do primeiro-ministro da Noruega, matando oito pessoas, tendo depois seguido caminho até à pequena ilha de Utøya, onde abateu a tiro outras 69, quase todas adolescentes e membros da ala jovem do Partido Trabalhista norueguês (centro-esquerda).
Antes deste ataque terrorista, Breivik escreveu um documento de 1500 páginas – a que chamou 2083, Uma Declaração Europeia de Independência – onde expôs todas as suas ideias e sentimentos racistas e neonazis. O seu objetivo, ao escrever todas aquelas palavras e, em seguida, cometer uma autêntica chacina, era o de inspirar outros radicais (e fanáticos) da extrema-direita a seguir os seus passos. Para Breivik, era preciso instigar uma nova cruzada contra os que apelidou de “marxistas culturais/multiculturalistas traidores”.
Para evitar, precisamente, que Breivik usasse o seu julgamento como mera tribuna mediática, com o único intuito de expor as suas visões e apresentar-se como mártir (era esse o seu plano), foi deliberado, pelo tribunal, que o seu testemunho não seria televisionado.
Acabou condenado a 21 anos de prisão – o limite penal na Noruega –, contudo, a lei deste país inclui uma salvaguarda para que este tipo de sentenças possa ser estendido por mais tempo, enquanto se considerar que a pessoa encarcerada é demasiado perigosa para estar em liberdade. Na prática, e tendo em conta os crimes praticados por Breivik, a sua falta de arrependimento e o facto de sempre ter frisado que estava mentalmente são quando planeou e cometeu os assassinatos, isto significa que pode passar o resto da vida na prisão.
Dez anos depois, que lições tirámos desta tragédia, quanto mais não seja para que esta forma de violência, motivada pelo ódio racial e ideológico, jamais se repita?
Ainda esta semana, refere o site noticioso alemão Deutsche Welle, a agência de serviços secretos da Noruega (conhecida pelo acrónimo PST), deixou o alerta de que “as ideias de extrema-direita que inspiraram o ataque ainda são uma força motriz para os radicais de extrema-direita que vivem dentro e fora do país”.
Pior. A PST acredita que Breivik (que tinha 32 anos quando cometeu os crimes) serviu de fonte de inspiração e modelo para ataques terroristas que sucederam na última década, nomeadamente o massacre ocorrido em duas mesquitas da cidade de Christchurch (Nova Zelândia), em março de 2019, que provocou 51 mortos, perpetrado por um homem de 28 anos.
Os serviços secretos noruegueses também dão como exemplo o caso de Philip Manshaus, um norueguês que em agosto do mesmo ano matou a tiro a sua irmã adotiva, de origem chinesa, e que, após este crime, dirigiu-se a uma mesquita de Oslo para cometer mais assassinatos. Assim que lá chegou, disparou vários tiros contra a porta da mesquita, sendo que o cenário só não foi pior porque um membro da congregação religiosa, um homem de 65 anos que estava perto da entrada, conseguiu travar violentamente o jovem armado de 21 anos, impedindo-o de entrar no local de culto.
Quando foi apresentado a tribunal, Manshaus afirmou acreditar que a sua irmã-adotiva constituía um risco para a família, devido à sua origem asiática. Quanto ao que quis fazer na mesquita, o próprio admitiu a intenção: “Fiz tudo o que podia para levar a cabo o ataque”. O seu objetivo era o de mimetizar a matança de Christchurch.
Basicamente, Manshaus admitiu os factos e lamentou não ter conseguido ir mais longe nas suas intenções, mas negou a acusação que lhe era feita, argumentando que o seu ato tinha como intuito aplicar uma “justiça de emergência”, tendo igualmente manifestado a sua oposição à entrada no país de imigrantes não-ocidentais.
Em tribunal, o jovem chegou a virar-se para as câmaras fotográficas e, com a mão, fez um dos sinais de identificação usado pelos radicais de extrema-direita: o polegar e o indicador unidos pelas pontas, formando um círculo, com os restantes dedos erguidos, num gesto que pode ser confundido, por quem desconheça o verdadeiro significado, com o sinal de ‘zero’ ou de ‘OK’.
Em 2020, a própria PST admitiu ter recebido, um ano antes do crime, uma “vaga” pista sobre a ameaça que Manshaus poderia constituir, só que decidiu não agir por falta de “planos concretos” que indiciassem a intenção de cometer ataques.
Após o massacre de Utøya faltou coragem política para lidar com a extrema-direita, sendo que ela acabou por ter direito a mais espaços de grande mediatismo em nome de uma maior liberdade de expressão, critica autor que estudou o fenómeno
“Estive entre os que defendiam, à época, um acerto de contas nacional com a ideologia de extrema-direita, racista e islamofóbica que motivou Breivik. Isto porque eu sabia perfeitamente que as suas ideias sobre o Islão, os muçulmanos e a esquerda eram muito mais comuns entre os noruegueses do que muitos estavam dispostos a deixar transparecer. Mas a sociedade norueguesa não seguiu esse caminho”, escreveu para o jornal The Guardian o antropólogo social norueguês Sindre Bangstad, da Universidade de Oslo, autor do livro Anders Breivik e a Ascensão da Islamofobia (ainda sem uma edição em português).
Para Bangstad, os próprios sobreviventes de Utøya desejam que algo se faça em relação a esta ideologia islamofóbica de extrema-direita, contudo, o então Governo da Noruega, apesar de chefiado pelo Partido Trabalhista (em 2013 perderam as eleições legislativas para uma coligação liderada pelo Partido Conservador, de centro-direita), ficou preso num “impasse político e moral” sobre qual a melhor resposta a dar ao sucedido. Ou adotavam uma “retórica inclusiva”, em que o ataque terrorista seria considerado um ataque a todos os noruegueses, ou “enfatizariam o fato de que foi a esquerda norueguesa, em particular, o alvo” de Breivik. Segundo Bangstad, o executivo, liderado pelo primeiro-ministro Jens Stoltenberg (o mesmo que desde 2014 ocupa a função de secretário-geral da NATO), preferiu a primeira opção.
Consequências? “Qualquer conversa sobre as inegáveis ligações entre a visão do mundo, conspiratória e antimuçulmana, de Breivik e a ampla direita populista – incluindo o Partido do Progresso, do qual Breivik foi membro durante vários anos – tornou-se num tabu”, refere.
Antes de mais, um pouco de contexto. Em 2009, o Partido do Progresso obteve perto de 23% dos votos, deixando-o na oposição, mas nas legislativas de 2013, apesar de ter baixado para os 16%, conseguiu integrar o governo de coligação do Partido Conservador, do qual acabou por sair em 2020. O motivo para a saída da coligação deveu-se ao repatriamento para a Noruega de uma cidadã que se tinha voluntariado para o Estado Islâmico: no passado, viajou para a Síria e casou-se com um soldado deste grupo jihadista. O Partido do Progresso defendeu, intransigentemente, que não deveria ser prestado qualquer tipo de assistência neste regresso ao país. O Governo alegou motivos humanitários, pois um dos seus dois filhos menores, que também regressava à Noruega, precisava de ajuda médica urgente. A mãe acabou detida, mal aterrou, acusada de fazer parte de uma organização terrorista, mas foi de imediato levada para o hospital, tal como os seus filhos.
Regressemos à análise que o antropólogo Sindre Bangstad fez para o The Guardian. Ainda de acordo com este académico, no rescaldo do massacre de Utøya e da explosão da bomba junto à sede do Governo, os meios de comunicação social mainstream mudaram o seu discurso, tendo passado a preferir os termos ‘tragédia’ e ‘catástrofe’ para designar o sucedido, em vez da palavra ‘terrorismo’. Bangstad garante que isto aconteceu “logo que se soube que o culpado era um norueguês branco da extrema-direita radical, em vez de um muçulmano radicalizado”.
“Os noruegueses também aprenderam, rapidamente, que para os editores de uma comunicação social predominantemente branca e de classe média, a resposta proverbial ao discurso de ódio racista passava por «mais e maior liberdade de expressão». Espaços mediáticos, capazes de um alcance maior, foram oferecidos na Noruega a ativistas de extrema-direita, em nome da defesa da «liberdade de expressão».”
Após as legislativas de 2013, o partido mais à direita do parlamento norueguês, o Partido do Progresso, chegou pela primeira vez ao poder, ao aliar-se com o partido de centro-direita da primeira-ministra Erna Solberg (Partido Conservador). Com a entrada do Partido do Progresso, Bangstad diz que a porta ficou aberta para que “sentimentos” que se opõem radicalmente ao islamismo e à social-democracia, a ideologia política que era perfilhada pelos jovens do Partido Trabalhista que estavam reunidos na ilha de Utøya, chegassem ao Governo “apenas dois anos após o massacre”.
“Sabemos, através de estudos, que os eleitores do Partido do Progresso estavam entre os que menos provavelmente participariam nos eventos memorativos após os ataques de 2011. Ativistas do conselho municipal e de associações locais de Hole [o município onde está situada a ilha de Utøya] lutaram com unhas e dentes para impedir que aí se construísse um memorial nacional para as vítimas do massacre em Utøya. Passada uma década, foi necessária uma decisão judicial, no início deste ano, para os parar. Está documentado que até 70% de inqueridos do Partido do Progresso acreditam que o Partido Trabalhista «usou» o 22 de julho de 2011 para ganhos políticos [o estudo, publicado em junho deste ano, pode ser consultado aqui].”
Apesar deste cenário atual, o académico da Universidade de Oslo antevê um futuro em que as ideias associadas ao radicalismo de extrema-direita deixarão de ter um respaldo tão grande. Que dinâmicas estão a entrar em ação para o levar a acreditar nisso?
“As tendências contrárias à extrema-direita e à direita populista podem ser encontradas, principalmente, entre os muitos jovens noruegueses de todas as cores e credos que crescem em bairros cada vez mais multiculturais, onde o convívio quotidiano há muito que é uma faceta das suas vidas. Também pode ser encontrada no lento, mas constante, declínio de noruegueses que têm uma visão geral negativa dos imigrantes e da imigração. Por último, mas não menos importante, ela também pode ser encontrada entre os muitos jovens ativistas que, inspirados pelo Black Lives Matter e outros movimentos sociais nos últimos anos, têm reabastecido as fileiras do movimento antirracista norueguês, fornecendo-lhe uma nova energia e dinamismo. Quanto aos sobreviventes de Utøya, eles são e permanecem uma parte integrante destas tendências de oposição, tendo jurado «sempre lembrar e nunca permanecer em silêncio».”