O que leva Ferro Rodrigues e Augusto Santos Silva a uma atitude de permanente guerrilha perante a realidade que o Partido Socialista vive no tempo presente? O que faz deles personalidades tão amargas e tão passionais que obrigam a que os portugueses se perguntem sobre os seus passado e legado?

Há uma resposta simples - sempre foram insuportavelmente altaneiros e visceralmente despidos de contubérnio.

E o seu percurso autoriza a que tenham, com o PS e o centro-esquerda, uma atitude tão pouco respeitosa?

Os cargos relevantes que ocuparam recomendariam humildade. Em boa verdade, estão longe de poderem ser considerados históricos socialistas. Foram, nas primeiras décadas da democracia, militantes de grupelhos que eram contra o PS, que abrenunciavam Mário Soares. Soares, que era um homem avisado, tinha com Ferro, nos últimos anos, uma atitude de respeito pelo facto de ter sido seu sucessor, mas também tinha pouco interesse intelectual por ambos.

Ferro começou a militar no PS nos finais da década de 1980, já depois da grande luta que foi a eleição de Soares; Santos Silva aderiu na passagem dos oitenta para os noventa. Porém, falam hoje como se fossem referências genuínas do PS. Ora, essa condição pode estar no Presidente Honorário Manuel Alegre, nos fundadores como Jaime Gama, José Leitão, Arons de Carvalho ou António Campos; pode ver-se em João Soares, Maria de Belém, Carlos Lage, Vítor Ramalho ou Carlos César, personalidades que são da primeira hora: pode estar, até, em António Costa ou António José Seguro, já dos fins da década de 1970, mas não pode ser reclamada por Ferro ou Santos Silva.

Porém, mesmo não sendo fundadores do PS, tendo participado na guerrilha contra o PS quando era muito difícil construir a nossa democracia pluralista, estando contra Soares em diversos tempos, incluindo a candidatura presidencial de 1985, as últimas três décadas de vida política e usufruto governativo e partidário deveriam obrigar a que honrassem o passado do partido e construíssem a distância aos pequenos factos que é característica dos homens grandes.

O centro-esquerda vive o seu pior momento desde a revolução de Abril de 1974. O principal culpado da situação não é Pedro Nuno, por muitos erros que tenha cometido. É, sim, a desgovernação dos últimos anos, a falta de rasgo e de compromisso. Essa governação é, igualmente, um dos grandes responsáveis pelo crescimento da direita radical e populista.

Quando Pedro Adão e Silva, judicioso como é, diz que o caso português se encaixa num processo de perda eleitoral relevante da social democracia europeia, o que ele está a tentar fazer é desviar as atenções, passar por cima das responsabilidades e induzir ao esquecimento dos erros, do desnorte e da ausência de sentido do período governativo entre 2022 e 2024.

Mas se o último Governo do PS é o ator principal, não se pode esquecer que Ferro foi um dos que deram o primeiro gás a Ventura e que transformaram o deputado único num grupo de doze parlamentares; e que foi Santos Silva quem, na sua indestreza para o exercício da presidência do Parlamento, ajudou a elevar a dúzia de venturistas a meia centena de agentes desprovidos de tino e de respeito, perdendo mesmo o seu escano para um deles. Almeida Santos, o enorme Presidente com quem trabalhei de perto, teria sabido salvar a honra da Assembleia da República e impedir a degradação democrática a que assistimos.

Em paralelo, o PCP está contido num táxi e o Bloco transformado num poste de trânsito parlamentar. Ou seja, reduziram o PS a mínimos e fizeram desaparecer a esquerda da esquerda que agora se limita ao partido unipessoal tavarista.

Este enquadramento é essencial para que se entenda o que vai na cabeça aflita das duas personalidades (e de outras menores) que referi no início do texto.

Sobre presidenciais, Centeno, que com todo o direito não quer entrar no mundo de loucuras e egos depois do que lhe fizeram ao proporem o seu nome para primeiro ministro substituto, foi à sua vida ainda antes da desonra eleitoral recente; Vitorino, apesar da encenação, desistiu de ser candidato no final do ano passado quando viu que tudo era muito difícil; Santos Silva abriu janela e disse – estou a preparar-me!

Ora, quando este último reparou que já não tinha quase ninguém para o considerar, que o tempo em que lhe batiam palmas, por mera deferência, se tinha extinguido, disse, como um livrador, que ainda poderia chegar o salvador.

Farto de tanto jogo de sombras e recebendo centenas de apoios de gente muito respeitada, António José Seguro apresentou-se e ganhou, logo na primeira semana, a maioria do PS. Porém, para as personalidades que venho referindo, a candidatura do antigo líder do PS é tão inaceitável que tudo serve para o destratar, insultar e caluniar.

Seguro foi, nas décadas de 1980 e 1990, muito mais relevante do que qualquer um dos referidos, apesar das notas de rodapé que ambos reivindicam no final do marcelismo e no período revolucionário. Foi o líder juvenil, no Conselho Nacional da Juventude e na Juventude Socialista, que marcou uma geração, que deixou um vasto conjunto de conquistas, que flagelou o cavaquismo. Seguro foi deputado como as almas de que falo; foi ministro como as almas que acima indico; foi membro da direção restrita do PS como as almas referidas; foi líder parlamentar como uma das almas faladas; foi líder da JS e deputado europeu não sendo acompanhado por nenhuma das outras almas; foi líder do PS só acompanhado por outra alma. Seguro foi querido por Soares e por Guterres, os dois verdadeiros construtores do PS. Depois da política regressou à sua vida na universidade, como só aconteceu com um dos génios, criou valor, manteve amigos em todos os campos partidários e não tem “rabos de palha”.

Santos Silva, como já disse, não parou e indicou que poderia existir uma candidatura independente que ocuparia o tal espaço democrático que seria o seu. Estava escrito – Sampaio da Nóvoa, que sempre foi muito mais do que um suplente, passaria a ser o “homem de mão” dos aflitos.

Ferro veio logo a terreiro dizer que sim, seria o preferido. O Partido, que não é só o aparelho que detestam, nem os incansáveis coladores de cartazes que aturam os enfeitados, que é também constituído por milhares de cidadãos com pessnsamento, estatuto e passado, acha que Seguro deve regressar aos combates e ser a personalidade a ter em conta no futuro do país.

Sou de opinião que o PS, na atual circunstância, não deveria apoiar qualquer candidato e que Seguro deveria deixar claro que não quer o apoio formal do PS. Mas a minha opinião não tem lastro nos dirigentes, nos militantes e muito menos nos simpatizantes.

Perante este cenário, Sampaio da Nóvoa, que não precisa nada de ser candidato (e terá um resultado pior do que o que teve há uma década) para ter uma vida de referência e com influência na sociedade, deve saber que não o querem para ser o candidato do centro-esquerda, mas para ser o candidato dos descamisados e saudosistas do poder. E o atributo maior de um político é saber ler os sinais dos tempos.

Nada do que tem vindo a acontecer me surpreende. O PS, se quiser ter uma nova oportunidade governativa, vai ter de colocar de lado muitos dos protagonistas principais das últimas três décadas e, principalmente, as figuras que acima referi. E se elas quiserem ser recordadas no tempo vindoiro devem ter bem presente que, depois das luzes da ribalta, vem sempre o regresso ao anonimato. E também devem pensar se o apoio dado por ambos a Marcelo Rebelo de Sousa, na segunda candidatura, se encaixou na defesa da democracia e na salvaguarda do centro-esquerda que tanto propalam.

A única surpresa que tive, em todo este processo, veio de Fernando Medina, um grande quadro político. Disse: a candidatura de Sampaio da Nóvoa pode permitir que haja umas “primárias” até à primeira volta. Quem estiver melhor colocado deve ser o candidato do centro-esquerda que deve ir a eleições e o outro deve desistir.

Esta argumentação é um ardil extraordinário que põe em causa já não só a candidatura de Seguro, mas o próprio PS. Quando os órgãos do partido apoiarem oficialmente Seguro é para este ir até ao fim e não para que entre em competição com outra candidatura que não tem o apoio formal dos socialistas e que nasce do revisionismo.

Não seria a primeira vez. Em 1985, alguns apoiantes de Zenha também tentaram influenciar a opinião pública, através do semanário O Jornal, com o mesmo argumento. Se Zenha tivesse melhores apreciações na campanha, Soares deveria desistir. E até era assim no verão desse ano, mas o partido, percebendo que o que estava a acontecer era uma tentativa de mudar a sua natureza e mandarem nele a partir de fora, que a partir dali os poderes fáticos e as influências externas e malsãs poriam em causa a sua autonomia estratégica, zangou-se e mobilizou-se. Partindo dos 8%, Soares é eleito Presidente.

O PS não está à venda. O PS não é um grupo de amigos. O PS é o partido popular, territorial, autárquico, fundador da democracia e não pode ser tratado como coisa descartável por gente arrogante. O PS nunca poderá deixar-se humilhar por uma minoria que não aceita a sua circunstância e que não se conforma com a realidade do mundo de hoje. O PS, tendo estima por Sampaio da Nóvoa, deve dizer-lhe que faz mal se for candidato a mando de Ferro e Santos Silva. O antigo reitor deve antecipar o que será fazer uma campanha com eles (e um conjunto de viúvos do Bloco) atrás de si. Se acontecesse, seria trágico!